Separação não foi revogada pela PEC do Divórcio
Por Nemércio Rodrigues Marques
Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66, de 13 de julho de 2010, que alterou o artigo 226, parágrafo 6º da Constituição Federal, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou comprovada separação de fato por mais de dois anos, muitos estudiosos e operadores do Direito passaram a adotar o entendimento de que a separação judicial haveria sido revogada.
O presente trabalho tem por escopo demonstrar, com argumentos jurídicos e práticos, que a alteração do texto constitucional, com a supressão de requisitos para o divórcio, não revogou o instituto da separação; pelo contrário, ambos coexistem no sistema jurídico.
É da tradição de nosso Direito o reconhecimento do casamento no texto da Constituição, o que se dá a partir da Carta de 1891 (artigo 72, parágrafo 4º).
O Código Civil de 1916 previa o instituto do desquite como causa de dissolução da sociedade conjugal (artigo 315). O desquite poderia ser litigioso ou consensual.
A Constituição de 1934 previa a indissolubilidade do casamento e conferia à lei ordinária a determinação dos casos de anulação e desquite (artigo 114).[1]
Apesar de constantes tentativas de se introduzir o divórcio no ordenamento jurídico pátrio — o que teve início, segundo a doutrina[2], em 1897 —, manteve-se o princípio da indissolubilidade do casamento nas Constituições seguintes, inclusive na Carta de 1967.
Todavia, a Emenda Constitucional 9, de 28 de junho de 1977, deu nova redação ao artigo 175, parágrafo 1º da Constituição Federal, que passou a admitir o divórcio[3], nos seguintes termos: “o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.
Esclarece Washington de Barros Monteiro: “Com a superveniência dessa modificação constitucional, triunfou, em nosso país, a campanha contra o princípio da indissolubilidade, consagrado em todas as Constituições anteriores”.[4]
O divórcio foi, assim, introduzido na ordem jurídica pátria, condicionado, porém, à prévia separação judicial (antigo “desquite”) por mais de três anos.[5]
Sob a égide da Emenda 9, foi editada a Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que disciplinou, em nível infraconstitucional, o divórcio.
E assim foi até o advento da Carta de 1988 que, ao manter a regra da dissolubilidade do casamento pelo divórcio, ampliou-a às hipóteses de prévia separação judicial por mais de um ano ou comprovada separação de fato por mais de dois anos, verbis:
Art. 226 (...)
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
A regra em questão foi agasalhada pelo art. 1.580, caput, e § 2º, do Código Civil de 2002:
Art. 1.580. Decorrido 1 (um) ao do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio.
(...)
§ 2º O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.
Manteve-se o paralelo estabelecido entre o divórcio, que coloca fim ao casamento, e a separação judicial, que apenas põe termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime de bens (artigo 1.576 do Código Civil).
Com a entrada em vigor da Emenda 66, o parágrafo 6º do artigo 226 passou a ter a seguinte redação: “Art. 226 (...) § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.”
Suprimiram-se, assim, os requisitos da prévia separação judicial ou de fato. Persiste o divórcio, mas agora sem necessidade do preenchimento de tais requisitos.
Fica claro que a reforma em tela nada mais fez do que facilitar a dissolução do matrimônio, deixando de condicionar o divórcio à prévia separação judicial ou de fato.
O constituinte reformador nada disse sobre a dissolução da sociedade conjugal — matéria, aliás, estranha ao texto constitucional desde sempre, pois, como visto, as Constituições limitaram-se a disciplinar a (in)dissolubilidade do casamento. Com isso, não se pode dizer que a supressão dos requisitos do divórcio venha a afetar a coexistência da separação judicial.
Em outras palavras, a Emenda 66 não excluiu a possibilidade de separação judicial (litigiosa ou consensual); apenas — e isso resta claro da redação de sua epígrafe[6] — disciplinou de forma diversa o instituto do divórcio.
E não poderia ser diferente, visto que se trata de dois institutos diversos, sendo um equívoco, data venia, tratar a separação judicial como um minus em relação ao divórcio. Tanto é assim que os referidos institutos sempre foram independentes um do outro — admitindo-se, outrora, haver separação judicial sem divórcio e divórcio sem a prévia separação judicial.
Com isso, não se pode dizer que a abolição dos requisitos temporais do divórcio, de modo a facilitá-lo, tenha posto fim à separação judicial.
Ademais, prescreve a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 2º, parágrafo 1º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
Ora, além de não haver revogação expressa da separação judicial pela citada Emenda Constitucional, não há qualquer incompatibilidade entre sua redação e o regramento infraconstitucional que prevê aquele instituto. Vale insistir, o fato de a Constituição, a partir da Emenda, não mais exigir os requisitos temporais do divórcio em nada interfere na previsão infraconstitucional da separação (consensual ou litigiosa), nem tampouco é com ela incompatível.
Também não nos parece correto afirmar que a revogação da separação, conquanto não decorra a incompatibilidade entre as normas constitucional e legal, é fruto da “vontade do legislador”.
Primeiro porque, como visto, não é o que se infere da epígrafe da Emenda 66; em segundo lugar, no presente caso, a interpretação com base na “vontade do legislador” significa ignorar totalmente a ciência do direito e a teoria do ordenamento jurídico, com suas regras interpretativas, negando-se validade ao direito posto em favor de um critério eminentemente subjetivo e sem respaldo no texto normativo.
Examinada a questão do ponto de vista do direito material, cabe a breve reflexão sobre a existência de interesse processual em se requerer, judicialmente (ou mesmo extrajudicialmente), a separação, quando se permite, agora, o divórcio sem aqueles requisitos.
E a resposta é positiva, na medida em que, em tese, pode interessar ao casal, antes de pôr fim ao casamento, separar-se, ainda que provisoriamente, até que decida acerca da conveniência do divórcio. A medida é salutar, pois preserva a instituição do matrimônio e permite que o casal, a qualquer momento, restabeleça a união, sem a necessidade de novo casamento.
Tal interpretação está em consonância com o espírito que norteou o constituinte originário a dar preferência ao casamento civil (artigo 226, parágrafos 1º e 2º), sem prejuízo de reconhecer a união estável (parágrafo 3º).
Do exposto, resulta a conclusão de que a Emenda 66 apenas alterou a disciplina constitucional do divórcio. Permanece o regramento infraconstitucional da separação judicial, quer por não haver incompatibilidade, quer por se vislumbrar perfeitamente possível que um casal pretenda dissolver o vínculo matrimonial, sem colocar fim, definitivamente, ao casamento.
BIBLIOGRAFIA
BITTAR, Carlos Alberto; FILHO, Carlos Alberto Bittar. Direito civil constitucional, 3. ed., São Paulo, RT, 2003.
GOMES, Orlando. Direito de família, 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 2. v, 34. ed., São Paulo: Saraiva, 1997.
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[1] BITTAR, Carlos Alberto; FILHO, Carlos Alberto Bittar. Direito civil constitucional, 3. ed., São Paulo, RT, 2003, p. 81.
[2] Idem, ibidem.
[3] Segundo Orlando Gomes, “Foi árdua a luta pelo divórcio. A longa resistência deve-se à obstinação dos católicos em colocar a questão do divórcio no terreno confessional, como sucedera, no século passado [XIX], na França, colocação que é radicalmente falta porque a lei é feita para todos. (...) A verdade é que, nas camadas mais esclarecidas da população, formou-se o consenso de que a solução do divórcio seria superior à do desquite, considerada falsa, artificial, incompleta, que gerava problemas e conseqüências mais inconvenientes do ponto de vista moral e social.” (Direito de família, 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 276).
[4] Curso de direito civil. Direito de família. 2. v, 34. ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 220.
[5] Salvo a hipótese prevista no art. 2º da mencionada Emenda nº 9: “No caso de separação de fato, com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completados cinco anos, poderá ser promovida a ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do tempo da separação e sua causa”.
[6] “Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos”.
Fonte: Conjur
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Como afirmei em posts anteriores, a EC 66/2010, disse menos do que deveria.
Não é a vida mais preciosa que o livre-pensar, mas, é essa prerrogativa que a qualifica.
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010
EC 66/2010: Continua o bate-cabeças
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